quinta-feira, 24 de dezembro de 2020


 Luiz Maranhão nos arquivos do DOPS-SP

 

Reproduzimos reportagem do jornal natalense “O Poti” de 14 de abril de 1996, publicada pouco tempo depois da abertura ao público dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo. A reportagem é de autoria da jornalista Eldi Willms e revela a perseguição política do regime ao ex-deputado potiguar Luiz Maranhão, um dos 11 membros do Comitê Central do PCB a figurar na lista dos desaparecidos políticos. No próximo dia 25 de janeiro, iniciam-se as comemorações do centenário do seu nascimento.

 

No Dops paulista, a trajetória de um líder

 

Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS-SP) revela local e data da prisão do mais importante desaparecido político do Rio Grande do Norte. Luiz Ignácio Maranhão Filho foi preso em São Paulo em 3 de abril de 1974. As informações - secretas até há pouco tempo - foram abertas à pesquisa pública em 5 de dezembro de 1994. O ex-deputado estadual é mencionado em pelo menos 54 documentos de arquivos, entre relatórios confidenciais dos centros de informações do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do DOPS, além de recortes de jornais e fotografias. Hiram de Lima Pereira e Emanoel Bezerra dos Santos também estão fichados.

 

A informação mais remota e direta a Luiz Maranhão após a cassação de seus direitos políticos em 9 de junho de 1964, é a referência ao inquérito policial militar instaurado em 3 de agosto de 1970, no 1º Distrito Naval, “para apurar atividades subversivas do PCB”. A referência diz, textualmente, que Luiz Maranhão “foi citado como velho comunista, integrante de Comitê Central do PCB, vivendo clandestinamente, com prisão preventiva nos autos do IPM. Era a ligação do PCB com membros do clero progressista”. Na época, constava como “foragido”.

 

Até o final do ano de 1970, documentos que investigam o Comitê Central do PCB, mais de uma vez reiteram o pedido de prisão de Luiz Maranhão. Em 31 de dezembro de 1970, há outro requerimento pedindo a prisão de Luiz Maranhão, Hiram de Lima Pereira e outros 36, mencionados como “criminosos contra a Lei de Segurança Nacional”. Ainda de 1970, há um álbum de fotografias disseminado pelo Centro de Informação da Marinha, onde Hiram e Luiz Maranhão aparecem ao lado de Luís Carlos Prestes e mais 50 membros do Comitê Central do PCB.

 

Nos três anos seguintes, não foram encontrados documentos alusivos a Luiz Maranhão. De 1974 a 1979, as referências são intensas, mas sempre indiretas e retroativas. Sobre sua prisão, foi possível localizar apenas a anotação lacônica de uma ficha do Setor de Análise de Operações e Informações do DOPS. “Nascido em 1921, advogado, jornalista, professor universitário, ex-deputado estadual do Rio Grande do Norte, preso em São Paulo em 3 abril de 1974”.

 

Em outra ficha de 24 de maio de 1974, consta que Luiz Maranhão respondia processo na 2º Auditoria da Marinha, “incurso na Lei de Segurança Nacional e com prisão preventiva decretada. E pedida a localização e prisão do fichado”. Entretanto, esta data é posterior à referida data de prisão.

 

Os documentos revelam, portanto, informações e datas controversas. Mas transparecem indícios de que os órgãos de repressão prenderam Luiz Maranhão entre março e maio de 1974. Há um ofício da 2º Auditoria da Marinha datado de 14 de maio de 1974 e encaminhado ao DOPS-SP, pedindo a confirmação da prisão de Luiz Maranhão.

 

Em junho de 1976, o serviço de informação da Aeronáutica divulga informações sobre discursos de Luís Carlos Prestes em Portugal, em que o líder do PCB denunciava em entrevista que “nove membros do Comitê Central foram, nos últimos anos, sequestrados e, presumivelmente, assassinados”, entre eles Luiz Maranhão e Hiram de Lima Pereira.

 

Ciex aponta fim em 1974

 

Relatório do Centro de Informações do Exército, de 83 páginas, datado de setembro de 1976, afirma que “em 1974, os órgãos de segurança, já então sem preocupação com as organizações terroristas, intensificam em todo o país as investigações visando neutralizar as atividades do PCB”. Apresenta também a composição do Comitê Estadual em São Paulo, em 1973, cujos três primeiros nomes são Walter de Souza Ribeiro, Luiz Maranhão e João Massena Mello. Em seguida afirma que “a partir de maio de 1974, o PCB passa a dar como desaparecidos “justamente essas três pessoas”.

 

São inúmeros os documentos que denotam o esforço da comunidade de informação de reconstituir a estrutura e as atividades do PCB. É o caso da composição do Comitê Estadual do PCB em 1969, quando Luiz Maranhão consta como membro da Seção de Finanças. Tal informação está em um relatório do II Exército, datado de 10 de maio de 1974, portanto cinco anos depois.

 

A partir de meados de 1974, entidades ligadas à Igreja Católica e estudantis, começaram a pressionar por informações de pessoas desaparecidas. Em 7 de fevereiro de 1975, uma nota oficial do gabinete do Ministro da Justiça, tornou público o que afirmava ser os “dados constantes dos órgãos de segurança e informação” das pessoas procuradas. Sobre Luiz Maranhão, a nota diz que “em 1964 esteve em Cuba, juntamente com Francisco Julião, a convite de Fidel Castro”. Afirma também que “fez campanha contra o regime no exterior”, particularmente na França, conforme publicação do jornal “L'Humanité” de 23 de janeiro de 1967. Membro efetivo do PCB. Encontra-se foragido e com mandado de prisão preventiva expedido em 1971, pela 2ª Auditoria da Marinha".

 

Codinomes em 39 fichas

 

Em 39 fichas que remetem a cerca de 60 documentos alusivos a Luiz Maranhão, o DOPS registrou também os codinomes Aldo, Aluísio ou Orlando. Conforme o documento, Luiz Maranhão serviu-se do pseudônimo de Aldo Monteiro para assinar o artigo “Um dever dos revolucionários: participar das eleições municipais”, publicado na Voz Operária de abril de 1972. Porém esse fato só foi registrado em abril de 1975. A partir de 1977, o arquivo fornece basicamente recorte de jornais, com notícias do movimento de anistia, sobre o julgamento do processo dos 53 acusados de tentar reorganizar o PCB em 1967.

 

Articulação com o MDB

 

Os relatórios encontrados no DOPS de São Paulo, produzidos a partir de 1975, revelam que Luiz Maranhão desempenhou um papel fundamental dentro do PCB para a articulação do MDB visando as eleições de novembro de 1974. Juntamente com Giocondo Dias e Marco Antônio Tavares Coelho, Luiz Maranhão integrava a "Comissão de Entendimentos", conforme relatório do II Exército, de abril de 1975. “Os contatos e entendimentos com políticos foram sempre realizados por ele. Os de alto nível do partido", diz um relatório cujo assunto é "Articulação do PCB em apoio ao MDB".

 

O mesmo documento afirma que 13 membros do Comitê Central do PCB reuniram-se em São Paulo em novembro de 1973 - entre eles Luiz Maranhão quando decidiu-se participar ativamente das eleições de 1974, votar nos “democratas” e derrotar os “reacionários”. A maioria dos contatos políticos foram feitos por Luiz Maranhão e Marco Antônio Coelho. A Giocondo Dias cabiam “apenas ligações tidas como mais importantes, dando com sua presença o aval do partido”.

 

Nesse trabalho da Comissão de Entendimentos, ainda de acordo com o relatório, Luiz Maranhão manteve ligações diretas com Franco Montoro, Orestes Quércia, Itamar Franco, Lisâneas Maciel, Amaral Peixoto, Thales Ramalho, Paes de Andrade, Alencar Furtado e Ulysses Guimarães.

 

"Comunistas" na Igreja

Para a comunidade de informações, alguns setores do clero também eram "subversivos", e havia ligação entre a Igreja Católica e o PCB. Em três documentos, Luiz Maranhão é apontado como um elo entre as duas instituições.

 

Além de ser fichado como responsável de “orientar o PCB para utilizar a Igreja como cabeça-de-ponte em seu trabalho”, Luiz Maranhão também é mencionado em 1967 por ter mantido entendimentos com Dom Eugênio Salles, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Avelar Brandão Vilela, além de outros.

 

Luiz Maranhão nunca declinou da sua condição de membro do Comitê Central às autoridades eclesiásticas que visitou, que se apresenta como ex-deputado estadual do Rio Grande do Norte e como “jornalista militante", acrescentando que conhecia o arcebispo de Natal. A razão dessas visitas, seria a busca de solidariedade a pessoas massacradas nas prisões.

 

Destino de Hiram e Emanoel

 

Entre 1,5 milhão de fichas, 150 mil prontuários e 14 mil dossiês que fazem o arquivo do DOPS de São Paulo, estão informações de dois outros norte-rio-grandenses, Hiram de Lima Pereira e Emanoel dos Santos Bezerra.

 

Natural de São Bento do Norte, Emanoel Bezerra foi classificado como pertencente ao Partido Comunista Revolucionário e "morreu em tiroteio com as forças de segurança" em São Paulo, no dia 4 de setembro de 1973. A notícia de sua morte foi divulgada em setembro daquele ano pelo jornal "Diário da Noite". No DOPS registrou-se também como "vulgo Flávio, José Bernardino da Silva Filho".

 

As fichas de Hiram Pereira revelam que ele foi alvo de perseguição cerrada. Já em 1969 consta a cassação de seus direitos políticos por 10 anos. Em abril de 1976, o DOPS anotou, “conforme boletim informativo do Comando do III Exército de Porto Alegre, sua condenação, à revelia, em 23 de fevereiro de 1967, a pena de um ano de reclusão.

 

O DOPS chegou a entrar em detalhe na ficha de identificação de Hiram Pereira, "natural de Caicó, nascido aos 3 de outubro de 1913 (no registro 1914)". Faz constar informação da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, de 1953, quando já estava fichado como "comunista".

 

FHC e Ruth estão fichados

 

O Presidente Fernando Henrique e sua mulher Ruth Cardoso são duas entre tantas hoje celebridades fichadas pelo antigo DOPS. Sobre o presidente da República, há muitas referências, desde a década de 50. Dos membros do atual governo também estão Sérgio Motta, ministro das Comunicações, que foi militante da organização Ação Popular, preso em 1965, com "material subversivo". Sobre o ministro da Fazenda, Pedro Malan, consta que "uniu-se a João Sayad e Bresser Pereira para organizar a esquerda entre os professores da USP", na década de 70.

 

Pelé, o ministro Extraordinário dos Esportes, teria sido abordado por comunistas durante a Copa de 70 para assinar "manifesto contra o regime", mas recusou-se. O ex-presidente Itamar Franco também é apontado em muitos relatórios. Há ainda diversos artistas fichados, de Raul Seixas à Fernanda Montenegro e Gilberto Gil. Os religiosos também estão representados: encontram-se no arquivo fichas de Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, entre outros.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Luiz Maranhão, o santo da democracia

 

Com o título acima, comentei biografia de Luiz Maranhão lançada pela escritora Heloneida Studart em 2006. O comentário foi publicado originalmente pelo jornal natalense “O Poti” em 28 de janeiro de 2007. No próximo dia 25 de janeiro, iniciam-se as comemorações do centenário de nascimento de Luiz Maranhão, um do 11 desaparecidos políticos pertencentes ao Comitê Central do antigo PCB. Leia abaixo a íntegra do texto:

 

“Um dos muitos méritos do livro de Heloneida Studart "Luiz, o santo ateu", a ser lançado pela EDUFRN, é o melhor esclarecimento das posições políticas de Luiz Maranhão dentro do Partido Comunista Brasileiro. Segundo a escritora, Luiz Maranhão era adepto de um caminho democrático e gradualista das transformações sociais. Tais posições o aproximavam do chamado eurocomunismo.

 

Nos anos 60, os líderes do PC Italiano, inspirados em seu fundador Antônio Gramsci, preconizavam que, na Europa ocidental, a conquista do poder se daria dentro das regras do jogo democrático, em contraposição ao pensamento comunista tradicional, que defendia a tomada de poder pela via revolucionária de uma insurreição. Este último pensamento baseava-se nas ideias do líder da Revolução Russa de 1917, Vladimir Uliánov, mais conhecido como Lênin. No Brasil, um dos lideres da corrente leninista foi o secretário-geral do PCB, Luís Carlos Prestes.

 

Conta Heloneida Studart que Luiz Maranhão era um leitor frequente de Pietro Ingrao, um dos teóricos do eurocomunismo. Se fosse vivo, Luiz Maranhão talvez regozijar-se-ia com a evolução politica dos italianos. Em, 1976, o secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, propôs o “compromisso histórico”, uma aliança com o Partido Democrata-Cristão para juntos governarem a Itália. Essa aliança só viria a se formar, em parte, nos anos 90, sendo reeditada recentemente nas últimas eleições italianas. Hoje, o presidente daquele país é Georgio Napolitano, um ex-comunista do Partido dos Democratas de Esquerda, que governa em aliança com o primeiro-ministro Romano Prodi, católico do Partido Popular, partido surgido da ala progressista do extinto Partido Democrata-Cristão.

 

O livro de Heloneida reproduz artigo de Luiz Maranhão publicado em 1968 na revista Paz e Terra, em que defende a união entre marxistas e cristãos pela construção de um mundo mais justo. O livro traz ainda uma sintomática foto de Luiz Maranhão dos anos 50, então deputado estadual, ao lado do presidente da República, Juscelino Kubitscheck. Heloneida Studart deixa claro que o potiguar foi um batalhador pela renovação da esquerda brasileira. Nos anos 30, 40 e 50, o PCB adotou posições de extrema-esquerda. Pediu o voto em branco nas eleições presidenciais de 1950, apesar de suas bases operárias em todo o país votarem na chapa de Getúlio Vargas e Café Filho. Nas eleições de 1955, o PCB mudou de posição e apoiou Juscelino à Presidência. Uma nova política foi aprovada pelo Comitê Central em 1958 e no Congresso partidário de 1960, definiu-se por um caminho pacifico e democrático das transformações sociais no país. Propôs uma frente nacional reunindo os trabalhadores, as classes medias, o empresariado nacional, os partidos e personalidades desejosos de um desenvolvimento independente para o Brasil. A formulação dessa nova política contou com a participação do norte-rio-grandense.

 

Recordo uma conversa com o médico Vulpiano Cavalcante, fiel companheiro de Luiz Maranhão, para corroborar o livro de Heloneida Studart. O dr. Vulpiano contou-me que Luiz Maranhão lhe falou, certa vez, das diferenças entre ele e o sercretário-geral Luís Carlos Prestes, inclusive na dificuldade de relacionamento pessoal. Lembro-me também de um diálogo com o ex-vereador natalense Ju-liano Siqueira, em 1989, no Rio de Janeiro. Juliano Siqueira havia sido da corrente prestista e colaborador próximo de Prestes. Em entrevista com o ex-secretário-geral do PCB, Juliano Siqueira lhe pediu uma opinião sobre Luiz Maranhão. Prestes o classificou de "reformista". Apesar de, entre os comunistas tradicionais, o termo ter uma conotação negativa, Prestes tinha razão. Luiz Maranhão defendia as mudanças sociais pelo caminho democrático. Como ele, muitos intelectuais marxistas, no Brasil e no mundo, via na democracia não um mero recurso tático para a chegada ao poder. Mas um valor permanente, intrínseco ao pensamento socialista.

 

Como golpe de 64, aquele debate ideológico de fundo, que opunha a corrente leninista a outra de inspiração gramsciana, foi suspenso dentro do PCB. As duas correntes conciliaram as suas posições para enfrentar, de um lado, a dura repressão da política do regime, e de outro, as dissidências internas que originaram os grupos de guerrilha. Tais grupos advogavam a luta armada, contrariamente à diretriz partidária de resistência democrática numa frente ampla como caminho para vencer a ditadura e os obstáculos que impediam o desenvolvimento. Frente da qual Luiz Maranhão foi um dos seus principais articuladores nacionais.

 

O livro nos mostra a extraordinária atualidade das posições políticas de Luiz Maranhão. Elas são válidas ainda hoje, quando parte da esquerda brasileira chega ao poder e apresenta dificuldades de compreender as relações entre as instituições democráticas e de estabelecer uma política de aliança consequente, capaz de unir a sociedade em torno de um projeto nacional de desenvolvimento com justiça social.

 

Aprendi a admirar Luiz Maranhão ainda menino, à época da ditadura. Seu nome proibido era pronunciado baixinho, com respeito e admiração pelo meu pai, Lavanere Renovato. Luiz Maranhão fora seu professor de Geografia no Atheneu, bem como do meu tio, desembargador Elias Borges. Contava meu pai que, em fins dos anos 40, ao deixar o Atheneu, descia diariamente com outros estudantes a ladeira da antiga avenida Junqueira Ayres, hoje Câmara Cascudo, em direção às Rocas, onde morava, sempre acompanhado de Luiz Maranhão, que se dirigia à redação do Diário de Natal. Dizia meu pai que o professor jamais tentou impor aos seus alunos as suas ideias socialistas. Esta postura democrática está exposta no livro, nos capítulos em que a escritora narra a disposição permanente de Luiz Maranhão para o diálogo, até mesmo com pessoas de pensamento oposto ao seu, como o do jornalista Manoel Rodrigues de Melo, que nos anos 30 havia simpatizado com o integralismo, a variante brasileira do fascismo.

 

Após a leitura do livro de Heloneida Studart, podemos concluir que Luiz Maranhão é um símbolo não só para os que, como ele, são socialistas. As convicções democráticas daquele professor do Atheneu o fazem símbolo também de sociais-democratas e liberais. Enfim, de todos os homens e mulheres que acreditam no Estado de Direito, pelo qual Luiz Maranhão deu a vida.

 

* Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista. Foi militante do PCB, de 1982 a 1989, e, atualmente, atua na imprensa paulista.”

sexta-feira, 26 de julho de 2019


Esquerdas e questão democrática hoje

Cláudio de Oliveira – julho de 2019

Recebi um texto no qual o seu autor analisa que o erro do PT no poder teria sido alimentar “ilusões” com a “democracia burguesa”. Essa é também a visão que perpassa a resolução política do partido, de maio de 2016, ao avaliar a crise que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff (2).

O texto me fez lembrar da discussão que remonta à II Internacional (1889-1916). De um lado, Vladimir Lenin, para quem democracia é só forma de Estado, mais importando a luta de classe. De outro, Karl Kautsky e Julius Martov, defensores da democracia como valor universal.

Para mim, o erro fundamental do PT não foi se iludir, mas o de não acreditar plenamente na democracia. De não fortalecer e não aperfeiçoar as instituições democráticas. Como passo inicial e fundamental, não reformou para democratizar o sistema político-partidário e parlamentar, que é o principal centro decisório do país.

Deveríamos seguir o sistema alemão, que, ao meu ver, é o mais democrático do mundo: parlamentarismo, voto distrital misto, cláusula de barreira de 5% e financiamento público. Assim, abrem-se melhores possibilidades da  maioria intervir no Estado e regular o capitalismo.

Como diziam os velhos comunistas do PCB (não o de extrema-esquerda de hoje, mas a esquerda positiva de Marco Antônio Tavares Coelho, Armênio Guedes, Astrojildo Pereira e Cristiano Cordeiro), política é correlação de forças.

Se presentemente conseguirmos regular o capitalismo em escala global, como propõe Jürgen Habermas a partir da União Europeia, já teremos feito muitíssimo. Nesse caminho, há um dado da conjuntura a ser enfrentado: o populismo de direita, que deve ser combatido com uma frente democrática ampla, reunindo liberais, socialdemocratas, socialistas, comunistas e ambientalistas.

Portugal dá um bom exemplo ao unir PS, BE e PC no governo da Geringonça. Na Alemanha, acho importante a aliança CDU-SPD que deveria incorporar outras forças, como os Verdes. Na França, todos os democratas deveriam dialogar com Emmanuel Macron para encaminhar bem a crise e evitar a ascensão de Marine Le Pen. Na Espanha, as forças democráticas deveriam se unir em torno do governo do PSOE.

Mas só a união dos democratas contra o populismo não é suficiente. É preciso entrar em acordo e buscar uma plataforma que leve ao desenvolvimento econômico socialmente inclusivo em escala global. Desse modo, os cidadãos de todo mundo poderão se sentir beneficiários da riqueza produzida, legitimando a democracia.

E no Brasil, deveríamos fazer a mesma frente que elegeu Juscelino Kubitschek, presidente em 1955, conduziu a Constituinte em torno de Ulysses Guimarães em 1987/1988 e sustentou Itamar Franco em 1992.

Infelizmente, setores de esquerda não compreendem a questão democrática. Abriram espaço para o golpe de 1964, erraram ao propor a luta armada e boicotar as eleições de 1966, 1970, 1972, não apoiar Tancredo Neves em 1985 e votar contra a Constituição de 1988. E nos levaram à derrota em 1989 e 2018. E se não fizerem essa frente ampla, esses setores de esquerda, por sua estreiteza, poderão mais uma vez infligir outra derrota às forças democráticas do Brasil.

Quem viver, verá.

Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor do livro eletrônico “Lenin, Martov, a Revolução Russa e o Brasil”

NOTA

[1] Resolução de Conjuntura, maio 2016.
https://tinyurl.com/y5kvxga7
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Na foto, o primeiro-ministro espanhol Pedro Sanchez (PSOE) com o seu colega português Antônio Costa (PS).

segunda-feira, 1 de abril de 2019


Leitura obrigatória sobre 1964: San Tiago Dantas

Peço aos meus amigos a leitura do livro “Em busca da esquerda esquecida: San Tiago Dantas e a Frente Progressista”. (1)

Uma bela obra sobre San Tiago Dantas (PTB), ministro da Fazenda do governo João Goulart, e seu esforço para resolver a crise que antecedeu o golpe de 1964.

Destaco três questões discutidas no livro:

1 – A solução parlamentarista

San Tiago Dantas foi um dos articuladores da implantação do parlamentarismo como solução para contornar o veto das forças armadas à posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961.

O parlamentarismo não teve apoio dos três principais candidatos na eleição à Presidência da República marcada para 1965: Juscelino Kubistchek (PSD), Carlos Lacerda (UDN) e Leonel Brizola (PTB). O sistema parlamentar foi derrubado por um plebiscito.

Segundo o deputado Francisco Julião (PSB), “se o regime tivesse continuado parlamentarista, é possível que se houvesse evitado o golpe militar. Aliás, continuo parlamentarista até hoje, por convicção”. (2)

2 - O Plano Trienal

San Tiago Dantas apresentou juntamente com o ministro do Planejamento, o economista Celso Furtado, o Plano Trienal.

O plano, segundo o livro, tinha o “objetivo de estabelecer regras e instrumentos rígidos para o controle do déficit público e o combate à inflação sem comprometer o desenvolvimento econômico”.

O PIB havia caído de 7,7% em 1961 para 3,5% em 1962 e a inflação chegara a 50,1%.

As medidas foram bombardeadas tanto por representantes dos empresários como dos trabalhadores.

3- A Frente Progressista

Apoiado pelo PTB, PSB e deputados ligados ao ilegal PCB, minoritários no Congresso, Goulart incumbiu Dantas de ampliar a base de apoio do governo ao buscar um acordo de reformas moderadas com o centrista PSD, detentor da maior bancada na Câmara de Deputados.

A proposta da Frente Progressista foi torpedeada por setores majoritários da esquerda, que defendiam um programa de reformas que não tinha apoio da maioria dos parlamentares.

O Brasil caminhou para uma perigosa radicalização política. De um lado, a esquerda que chegou a propor soluções “extraparlamentares” (3), o fechamento do Congresso e a convocação de uma Constituinte. De outro, a direita que pedia a derrubada de Goulart. Esta última prevaleceu em 31 de março de 1964. A voz ponderada de San Tiago Dantas foi esquecida. Nos tempos de hoje, convém lembrá-la pela leitura do livro.

NOTAS

(1) Gabriel da Fonseca Onofre. Em busca da esquerda esquecida: San Tiago Dantas e a Frente Progressista. Curitiba: Prismas, 2015. 236p.

(2) Dênis de Moraes. A Esquerda e o Golpe de 64. Rio de Janriro: Editora Espaço Tempo, 1989.

(3) José Antonio Segatto. Reforma e Revolução. As Vicissitudes Politicas do PCB. 1954-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.